Os bichos do Natal

No Natal geralmente ficamos mais sensitivos pelas coisas que passamos ou presenciamos. É sempre momento de reflexão e recomeço. Geramos empatias pelo próximo e nos emocionamos mais.

Confesso que tenho alguns momentos de lucidez e percepção do despertar para o momento do agora. Como estou estudando a filosofia e a prática do budismo nos últimos meses, creio que isso tem ajudado nesse meu último e rápido “despertar”. Descrevo-o agora.

Entrei no meu carro e tomei por destino minha cidade, Bezerros, depois de um dia muito movimentado e cheio de tribulações na capital Pernambucana. Estava exausto pelo dia que tive e ainda estava enfrentando o pior horário do trânsito terrível do Recife. Estava preso no congestionamento da Av. Abdias de Carvalho, sem previsão de quando chegaria em casa. Por um segundo me senti feliz por ser “matuto” do interior e não precisar enfrentar diariamente esse caos.

Cada minuto que passava era um sofrimento a mais. Irritado cheguei a buzinar para o carro da frente “andar” e levei umas buzinadas também. Foi aí que falei: isso é um “inferno”! Passado esse momento de angústia e incapacidade, uma coisa chamou minha atenção e trouxe esse meu “despertar”. Comecei a observar tudo que acontecia à minha volta. Olhei: os prédios, os diferentes tipos de carros e as pessoas que estavam dentro. Continuei observando e vi um bicho:

Vi ontem um bicho

No meio do trânsito

Desviando das motos entre os carros.

Quando achava alguma pessoa,

Não esperava nem hesitava:

Corria com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Para quem conhece o poema “O Bicho” de Manuel Bandeira vai perceber a semelhança nos dois primeiros versos e uma cópia dos últimos dois.

Esse bicho, quero dizer, esse homem/ mulher como de costume vestia: uma camisa tipo regata, um short bem “surrado” e sandálias de dedo. Carregavam: bolsas gigantes com pipocas, bacias e bandejas com frutas, um recipiente com garrafas de água mineral no botijão improvisado e cortado ao meio, dentre outras coisas que tentavam vender. Incrível era ver a habilidade deles de desviar dos carros e principalmente das motos. Com olhos de “águia”, esses trabalhadores conseguem perceber, mesmo com os vidros dos carros fechados, o menor sinal de interesse de um motorista querendo comprar alguma coisa. Toda essa correria acontecendo em segundos; o tempo suficiente para o sinal abrir. Quando o trânsito piorava, ajudava no tempo das vendas, mas o perigo aumentava para eles, por conta das motos que passavam em alta velocidade entre os carros.

Como o trânsito não ajudava, consegui focar meu olhar nos olhos deles e compreendi o que eles diziam em seus rostos. Rostos cansados por estarem há horas correndo de lá para cá, olhos confusos e preocupados, para talvez no final da jornada, poderem levar um pouco de comida e dignidade para casa. Acredito que é mais difícil entender o que vi e senti para quem presencia essa cena diariamente. Mas, para mim foi muito duro começar a entender…

Nesse momento alguns poderiam até condená-los e culpá-los. Alegar que estão nessa situação por eles não terem se esforçado quando eram jovens. Até dizer: “eles merecem”. E justificar a tão discutida: “meritocracia”. Porém, eu penso: será que eles tiveram escolha? Será que foram “preguiçosos” para estudar? Ou essa oportunidade não foi oferecida? Alguém ou o estado esteve presente? Aconselhou ou motivou para despertarem a vontade e terem a oportunidade de estudar? Acredito que não… Como essas pessoas poderiam ter forças para estudar, ler ou até pensar outra alternativa com essa vida que eles levam hoje, ou sempre levaram? Existem oportunidades? Teriam forças e condições psicológicas para isso?

Para não morrerem atropelados, notei que durante toda a jornada de trabalho, o foco e pensamento deles estavam no trânsito e nas suas vendas. Sem sobrar um segundo se quer, para refletirem suas vidas e os direitos que eles possivelmente têm. Foi nesse momento que senti uma vergonha enorme de mim mesmo. Momentos antes eu estava “blasfemando” pelo cansaço e trânsito que eu enfrentava. Vi-me dirigindo e cansado, porém, estava sentado de maneira confortável, com o ar-condicionado ligado, escutava uma música super agradável e estava bem alimentado. Caiu a ficha quando eu percebi que, mesmo com minha carga de trabalho e luta diária, ainda tenho tempo para: ler, estudar, passear e refletir como posso crescer pessoalmente, financeiramente e espiritualmente. Que opções esses irmãozinhos têm? Quando estou julgando-os, faço correto? Tenho esse direito de julgá-los? Seriam vítimas da sociedade?

Foi quando baixei o vidro do carro, sorri e falei:

  • Boa tarde! Uma água por favor. Tome 5 reais e fique com o troco.

Antes de continuar a viagem falei ainda:

  • Feliz Natal…

Pierre Pessôa

Professor e eterno aprendiz.

Share